quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Para quê matar o prestidigitador?

pg. 38 - A experiência interior - Georges Bataille

"Já faz algum tempo que a única filosofia ainda viva, a da escola alemã, tende a fazer do conhecimento último a extensão da experiência interior. Mas essa fenomenologia atribui ao conhecimento o valor de um fim a que se chega pela experiência. É uma aliança capenga: o papel atribuído à experiência é ao mesmo tempo demasiado e não bastante grande.  Os que lhe atribuem esse papel devem sentir que ela transborda, por um imenso possível, o uso a que se limitam. O que preserva em aparência a filosofia é a pouca acuidade das experiências de que partem os fenomenólogos. Essa ausência de equilíbrio não sobrevive à colocação em jogo da experiência que vai ao extremo do possível. Já que ir ao extremo do possível significa no mínimo isto: que o limite que é o conhecimento como fim seja transposto."

Aforismo 6 do Livro 1 - Aurora - Friedrich Nietzsche - Tradução Paulo César de Souza

"O prestigitador e seu oposto - O que é espantoso na ciência é o contrário do que é espantoso arte do prestidigitador. Pois este quer que vejamos uma causalidade bem simples onde atua, na realidade, uma causalidade bem complexa. Enquanto a ciência nos faz abandonar causalidades simples onde tudo parece facilmente compreensível e nós somos os bufões da aparência. As coisas 'mais simples são muito complicadas - não podemos nos maravilhar o bastante com isso!"

Itálicos do texto original. Negritos meus.


Resumo:
Na fenomenologia o papel atribuído à experiência é ao mesmo tempo demasiado e não bastante grade. É preciso abandonar essa fenomenologia já que não é possível se maravilhar com coisas que são muito complicadas.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Recapitulação

Carolina Nova Cruz

Experiência interior - George Bataille

No último encontro oco, recapitulamos nossos encontros com Bataille.
Fiquei de escrever aqui palavras-chave.

Nos encontros, os membros variaram. Dois foram fixos: Georges e Fernando. Bataille e Scheibe. Encontros com fantasmas, mortos e vivos.
O fantasma vivo nos disse em prefácio que precisaríamos de intensa paciência, de inteligente acefalia. E o tivemos.

Por momentos entendemos tudo e de repente mais nada. Por dias lemos muito, em outros poucas linhas. Engraçado que retomando os conceitos para publicar essa recapitulação vejo que o ritmo da nossa leitura, fragmentada e tropeçante, se confunde com o ritmo das palavras de Bataille. Ou talvez tenha sido só preguiça.

Enfim, retomando. A experiência interior começa com um preâmbulo.
Bataille nietzschianamente diz o que quer do seu escrito: que seja um espaço em que profundidade e jovialidade deem as mãos.
E posiciona, de pronto, o grande ponto de interrogação. O eleva a um patamar por ele nunca antes visto, na história (desse pensamento filosófico?)
E fala dos propósitos do livro e de onde ele surgiu: se trata de um relato de desespero.
Um texto surgido do sofrimento do desintoxicado. E desde cedo declara: não foi suficiente sem ser insuficiente. Não teve sucesso em não querer ser tudo. Resta uma vontade de suficiência, algo da tradição que Bataille recusa e detesta em seu livro.
Mas também anuncia que em momentos o pensar se perdeu por inteiro, e se encontrou no ponto onde ri a multidão unânime. Talvez tenhamos nos encontrado na leitura onde unanimemente nos perdemos, cada um de um jeito.

E de repente chegamos no esboço de uma introdução à experiência interior.
Aqui reparo que Bataille parece balançar entre uma humildade cristã e um orgulho megalomaníaco. Em poucas linhas temos um esboço de um projeto de uma introdução fracassada e uma radicalidade nunca antes vista na filosofia, assumidas com a mesma intensidade pelos escritos.

Na crítica da servidão dogmática (e do misticismo),  Bataille aproxima, por hábito (e crença?) a experiência interior dos estados de êxtase religioso. Mas faz logo uma distinção: ao contrário da experiência mística, Bataille procura uma experiência nua e livre de amarras, que se afasta do teor confessional do misticismo.
O dogma forneceu limite indevido à experiência. O fato de Bataille reconhecer limites indevidos não quer dizer que não haja limites nesse pensamento: e sim que os limites foram postos muito aqué do extremo do possível. Vejo aqui um convite para esticar a vida ao extremo, não reconhecer amarra alguma que não seja a amarra última: aquela que não leva a lugar nenhum: e sim aquela que extravia.

Sobre o poético, deus e o desconhecido, nos detivemos bastante, não chegando a lugar nenhum (aqui não consigo deixar de pensar que Bataille ficaria exultante com isso).
Algo que aparentemente concordamos foi: tanto Deus quanto o poético geram uma parada no movimento que leva à uma aproximação do desconhecido, da forma mais obscura e portanto mais perto do extremo do possível. Já que afinal o desconhecido exige um império sem partilha.

A experiência, única autoridade, único valor
Aqui lemos o paradoxo da ideia de projeto: a recusa do projeto que não deixa de ser por si só uma espécie, ainda que peculiar, de projeto.
O que Bataille opõe a ideia de projeto (que recusa) é a decisão.
A experiência é a autoridade e valor.
Atinge a fusão do objeto e sujeito - um lugar de comunicação, uma entrada em um si mesmo, que não procura do lado de fora as autoridades.
Sujeito: não-saber. Objeto: desconhecido.
E assim saber científico se separa da experiência, e assim Bataille se afasta da Fenomenologia, aquela que persiste na tentativa frustrada do projeto de ser humano: unir experiência e saber.


Em princípios de um método e de uma comunidade, chegamos à importância da dramatização. Se não soubéssemos dramatizar, viveríamos isolados e apertados.
Isolado e apertado é tão difícil de imaginar quanto uma ilha cercada de terra. E ao mesmo tempo não é difícil se sentir isolado e apertado em momentos de angústia. Porque a angústia é ambígua. Em um mundo em que não se consegue apoiar em coisa alguma, a ironia está livre.
E de repente o texto se debruça sobre o texto: sobre o paradoxo que é procurar o silêncio escrevendo. E ao escrever quebrar o silêncio. A palavra silêncio é ainda barulho.
Ainda assim, subsiste em nós uma parte muda, esquiva e inapreensível. Ligados à pureza do céu, ao cheiro de um quarto, de forma que a linguagem é despossuída.

E aqui coloco alguns termos-chave:

É preciso, ou pré-requisitos, para a viagem ao extremo do possível
Não querer ser tudo
Angústia e desejo prévios
Pathos de algum tipo
Serem negadas as autoridades, os valores existentes, que limitem o possível.

Autoridade
A experiência

Experiência
"É a colocação em questão, na febre e angústia, daquilo que um homem sabe do fato de ser".
"É uma viagem ao extremo possível do homem".

Desconhecido
Exige um império sem partilha
Não é apreensível

Projeto
Decisão - Ataque ao projeto
Paradoxo (não contradição)
O projeto é não ter projeto
Seu "projeto" é inapreensível, é aquilo que nos ultrapassa. Mas o que usa para chegar, ou descrever o processo de busca, é a linguagem. A linguagem mesma do que recusa.
Usa termos centrais da tradição que nega.
O texto é indeciso, tropeça, diz e desdiz, muda de forma no mesmo parágrafo.
O aspecto linguístico: mostra a radicalidade da proposta.
A linguagem, com exceção da perversão poética, é projeto.

Ascese
É recusada: o extremo é atingido por excesso, não por falta.

Tradição
É coletiva, reconhecível


e Um paralelo bonito, pensado pelo Fernando


As imagens transtornadoras e os meios-termos aos quais recorre a emoção poética nos tocam sem dificuldade. Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o familiar dissolvendo-se no estranho, e nós mesmos com ele. Ele nunca nos desapossa totalmente, pois as palavras, as imagens dissolvidas, estão carregadas de emoções já sentidas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido.

com...

As palavras se sujam de nós na viagem
Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.

Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.
Manoel de Barros

Sinto que Manoel de Barros se junta com Bataille no momento em que, na poesia, a linguagem deixa o projeto, se livra das tripas do espírito e se torna soberana. Poesia é a festa da linguagem. O respiro oco que deixa ver uma fresta, onde a linguagem não pode dizer, onde o projeto não pode planejar. Algo que deve ter a ver com um vento no rosto ou o cheiro de um quarto.

E algumas distinções que conversamos também:

Deus
Poético
Desconhecido
Apreensão daquilo que nos ultrapassa
Apreensão daquilo que nos ultrapassa
Não apreende
Carga emocional
Carga emocional
Nos deixa frios


Um estranhamento meu:
Bataille diz que é preciso ser um homem inteiro, não mutilado: que é preciso escolher a vida árdua e atormentada que corresponde à via do homem inteiro.

Mas o homem inteiro me parece tão estranho, já que Bataille insiste muito em não buscar querer ser tudo, querer ser pleno, querer ser (inteiro?). Bataille a todo tempo recusa essa vontade de suficiência. Mas talvez o homem inteiro não seja o homem pleno, e sim o homem aberto a buscar, apesar da dor, o caminho ao extremo do possível. O que acham?